04-07-2011 21:52

Desistir: palavra riscada

A história de uma gari que encara as peças que a vida lhe prega com a cabeça no pódio e os olhos fixos na linha de chegada

Eis Daniela do Carmo, a gari que não se cansa de correr contra as adversidades.

Texto: Érica Fernandes/ Imagens: Lidiane Sant'Ana

O suor escorria pela pele morena do rosto enquanto as pernas insistiam em chegar ao último quilômetro da corrida. Faltava ar, havia sede e os trinta e cinco anos de idade tornavam o corpo da gari, Daniela do Carmo, ainda mais pesado. Havia apenas uma pessoa na sua frente, mas os olhos vibrantes dos treze jovens que vinham atrás causava calafrios no estômago. Os passos começaram a ficar trôpegos com as improbabilidades.

Ao fechar os olhos por alguns instantes, a voz da professora da sétima série parecia ecoar nos ouvidos: “Não desista Daniela”. A imagem dos escritos bíblicos, “tudo posso naquele que me fortalece” dançam na sua mente. As forças estão de volta. O cérebro liberou mais adrenalina e agora, sem hesitar, corre. Na tarde do mês de dezembro, do ano de 2010, chega em segundo na corrida do Mato Galo, mas a alegria que está no rosto é do primeiro lugar.

Essa foi a última corrida que a gari Daniela, a “Dani” para os companheiros dos Serviços de Limpeza Urbana da Prefeitura de Belo Horizonte (SLU-BH), participou. Funcionária há quase 20 anos pela SLU e corredora há oito anos, ela já esteve em mais de vinte campeonatos de média e longa distância. Esteve em corridas como da Track&Field, com 1700 corredores, e guarda na estante do quarto uma coleção de troféus.

Fugindo do destino

A história parece de sucesso, mas nem sempre foi assim. A mãe, ainda menina, escondia no guarda-roupa para não sofrer com os safanões do avô alcoólatra. Todas ou quase todas as noites ao adentrar a casa, dava socos e tapas na filha e na esposa. A agressão física, vivida durante grande parte da vida, provocou sérios problemas psicológicos em Ana Lúcia do Carmo, mãe de Daniela.
 
Durante a juventude, Ana se envolveu com um homem casado. Fruto desse relacionamento ilícito ficou grávida da única filha. O pai, preocupado com a reputação social e com o término do casamento, pediu o aborto. Apesar da rejeição, Ana “dá a luz” a uma menina de nariz fino, cabelos encaracolados e pele morena.

Os ataques epiléticos e as constantes crises nervosas fizeram com que a única filha fosse entregue aos cuidados do irmão, José Antônio do Carmo. Como não podia ter filhos, José e Maria do Carmo receberam com alegria a pequena Daniela. Após cinco anos de idade, os pais adotivos resolveram acolher outra criança: Paulo Roberto.

- - - - - - - - - - - - - -
A mãe, ainda menina, escondia no guarda-roupa para não sofrer com os safanões do avô alcoólatra.
- - - - - - - - - - - - - -

Na adolescência, Paulinho passou a ser usuário de drogas ilícitas. A dependência química tornou o temperamento agressivo do garoto ainda pior. Embora fosse cuidado com muito alento na infância, batia nos pais quando não dispunha de dinheiro para manter o vício. Daniela conta ter se defendido todas as vezes que o irmão adotivo ameaçava agredi-la. Apesar de nunca ter sofrido com violência doméstica presenciada diariamente, esta a fazia esmaecer de tristeza. Para fugir das cenas, saia para rua. Corria de um lado ao outro até que as brigas cessassem.

Como integrante de uma igreja protestante, aos 17 anos, resolve engravidar do namorado. A ideia era provocar um rápido casamento e escapar do ambiente instável do lar. A família condena seu ato e não oferece nenhum apoio para o enlace matrimonial. A amiga empresta o vestido de noiva, os vizinhos auxiliam no pagamento dos preparativos. Então, no ano de 1993, com muito esforço e poucos recursos financeiros, casa-se.
 

Feliz é aquele que sente o prazer de subir no lugar mais alto do pódio mesmo quando a vitória lhe escapa.

Quando o filho nasce, começa a trabalhar como varredora em uma das empreiteiras da SLU. Os uniformes eram cheios de remendos. A Superintendência, para piorar, não oferecia condições mínimas para o trabalho como botas, sapatos e luvas. Depois da jornada de serviço, ainda precisava ir para a escola, onde completava o terceiro ano do ensino médio. Dentro do ônibus, lembra-se da prova de história que a aguardava. Olha para o relógio e nota que não terá tempo de tomar banho. Vai direto para o colégio.
 
Os alunos caçoam do seu uniforme de gari. Senta-se em uma das carteiras da sala de aula e as lágrimas começam a escorrer dos olhos. A professora deixa a prova sobre a mesa, inclina o corpo o suficiente para alcançar os ouvidos de Daniela e sussurra: “Não desista, você vai conseguir chegar até o final”. Dias depois recebe o resultado da prova: 4,5 em 5.

- - - - - - - - - - - - - - -
Os alunos caçoam do seu uniforme de gari. Senta-se em uma das carteiras da sala de aula e as lágrimas começam a escorrer dos olhos.
- - - - - - - - - - - - - - -

Um ano depois, o marido Elso Cândido dos Santos chega do trabalho com um folheto informando sobre a abertura de vagas no SLU de Belo Horizonte. A notícia trouxe entusiasmo e esperança. Em virtude do anúncio, Daniela passa a treinar todas as tardes na pista de cooper para o teste físico da PBH. No último dia antes da prova, encontra-se com o irmão no lugar de treinamento. Descobre que ele fará o mesmo exame. Deixa de lado os desentendimentos e se senta abaixo de uma árvore com Paulinho. Ali passam longas horas conversando sobre o futuro. Aconselha-o a abandonar o vício e imagina como seria bom trabalharem juntos.

Mais tarde, enquanto aguardava o ônibus para retornar a casa, descobre que o irmão sofreu um grave acidente. O trem passou por cima de uma das pernas. O desastre ocorreu porque Paulo cheirava tíner enquanto o trem passava. O efeito da droga impossibilitou a percepção da chegada da locomotiva.
 
O dia da prova chegou. Enquanto amarrava o cadarço do tênis para correr, a lembrança do irmão caçula em cima da cama de hospital fazia as batidas do coração diminuirem e formarem um nó na garganta. Planeja retornar para casa e desistir da prova. Olha em volta e nota que todas as pernas dos participantes são perfeitas e lembra que Paulo jamais fará uma corrida. Engole o choro, reúne forças do lugar que ninguém imagina qual seja e corre. Corre tanto que a prova estimada em doze minutos é concluída com a metade do tempo.

Início de um sonho

Confira uma matéria da Conecta BH sobre os garis corredores da SLU.

Em 2003, um dos amigos de trabalho informa sobre a Corrida do Servidor. A atividade contava com atletas profissionais da PBH. Apesar da inexperiência, Daniela se propõe a participar. Chega em quinto lugar na modalidade velocidade. Embora não tenha alcançado uma posição conceituada, opta por dedicar ao esporte.
 
Coloca a mochila nas costas e leva o filho mais novo para creche. Após deixá-lo na escolinha, segue correndo em direção a Unidade de Recebimento de Pequenos Volumes – URPV Milionários, onde trabalha durante todo o dia. O percurso de cerca de 5 km é sempre cronometrado e completado em aproximadamente 20 minutos. E assim, sem recursos e também sem nenhum acompanhamento técnico, se exercita.

No próximo ano, faz novamente a inscrição para a Corrida do Servidor, mas dessa vez chega em segundo lugar. No dia seguinte à competição, os amigos da URPV preparam uma festa surpresa para a campeã. Enquanto comemora, o telefone toca. A notícia que a ligação traz provoca choro e gritos de desespero. O irmão havia sido morto com cinco tiros. Traficantes o assassinaram por uma dívida de mil reais.
 
Longe das pistas por quatro anos, participa em 2009 da primeira corrida com modalidade de resistência. Apesar de não ser sua especialidade, arrisca. A corrida da Vallourec & Mannesmman, em que Daniela se inscreveu, recebeu mais de 400 participantes. A multidão a sua volta causa certo receio. Esquiva o olhar e o concentra na chegada. A aspiração a conduz ao terceiro lugar.

- - - - - - - - - - - - - - -
Coloca a mochila nas costas e leva o filho mais novo para creche. Após deixá-lo na escolinha, segue correndo em direção a Unidade de Recebimento de Pequenos Volumes – URPV Milionários, onde trabalha durante todo o dia.

- - - - - - - - - - - - - - -

Houve a notícia que haverá outra competição de longa distância na cidade, a corrida da Track & Field Run Series. Ao seu lado concorrerão quase 2000 atletas. Os números trazem emoção e um desejo de vencer. No mês de abril, enquanto treinava, perde dois entes queridos: a melhor amiga e a tia.
 
Sem conhecer as regras da competição, Daniela larga a corrida no meio da multidão, enquanto deveria estar na frente junto aos outros atletas profissionais. Na noite anterior, passa a madrugada lavando as roupas da família o que a faz parar durante três vezes no percurso. Mesmo esbaforida, insiste em chegar ao final. Acaba ocupando o 7º lugar.

Em 2010, retorna ao Campeonato da Track & Field Run Series. Ao lado de centenas de profissionais, Daniela corre. Não se preocupa com as dores do corpo, com a idade ou com o número de participantes. A única coisa que deseja é estar junto aos vencedores. Para subir ao pódio, ela deveria chegar até o 5° lugar. Desligo o gravador e faço minha última pergunta. Quis saber qual foi a sensação de ter chegado na quinta posição. Com um largo sorriso, ela me responde: "Sensação de que venci mais uma vez".

Confira também:

- A história de Mauro Satter, o gari que virou chefe em Beagá

—————

Voltar


Tópico: Sem forças para desistir

Data: 05-07-2011

De: Dayanna Oliveira

Assunto: :)

Muito bom Érica Fernandes,você é uma ótima escritora.

Responder

—————