“Você só vai se realizar na música”
A história de uma mineira que atravessou rios, vales, montanhas e oceanos em nome da música
Ao lado do inseparável piano, a regente Tia Elza, um exemplo de 51 anos de dedicação ao canto coral.
Texto e imagens: Heitor Zagnoli
A canção Trenzinho Caipira ilustra a história da regente Elza do Val Gomes. Parece que Villa-Lobos e Ferreira Gullar fizeram esta canção pensando na Tia Elza - como todos a conhecem - e em sua dedicação integral ao canto coral. Sua trajetória teve início no primeiro dia de 1960, na formatura do seu irmão Arlindo Pardini, o caçula da primeira turma de Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, em Uberaba - hoje Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). O trem que levou os 22 cantores à região demorou “quase” nada. Pouco menos de 36 horas. "Foi logo ali", como o mineiro diz.
O pai da Tia Elza, o senhor Pardini, liderava o coro em favor da continuidade do coral. “Ele sempre motivou o trabalho”, lembra a regente. Na volta para Belo Horizonte, entretanto, Pardini esboçou tristeza pelo fim do trabalho. Foi quando sua filha reuniu os cantores e questionou cada um sobre o prosseguimento do Júlia Pardini. A resposta foi unânime: "Queremos continuar!" E se fez assim, como se cumprissem uma profecia.
Apaixonada pela música desde os oito anos de idade, sua trajetória não poderia ser diferente. Ainda criança, Tia Elza já apreciava as óperas apresentadas no Cine Brasil, o que fez do canto-coral sua verdadeira paixão. Por isso, o senhor Pardini se recusara deixar que o ideal de musicista da, hoje, regente se tornasse apenas um sonho de menina. Assim, tão logo na escola, ela aprendera teoria musical e solfejo. E com o tempo, a evolução da jovem se tornara nítida.
De uma época em que as pessoas do bairro Floresta eram mais próximas e se conheciam, Tia Elza recebeu um convite do padre daquela paróquia, juntamente com suas irmãs, para cantar no Coral Regina Paces. Seu desempenho em lidar com um grupo de quatro vozes foi tão perceptível que a regente do coro entregou o cargo para a jovem, então com 16 anos, que tinha noções básicas de música e que agora sonhava em ser advogada.
Tia Elza recorda que no início pensou em abandonar o canto coral, por ser um trabalho que lida com diversos obstáculos. Naquela época, sua avó Júlia Pardini estava bastante doente a ponto de a regente pedir ao padre Roque que fosse à sua casa para dar a extrema unção à matriarca.
A morte de Júlia impulsionou Elza e em sua primeira apresentação angariou convites para seguir no canto coral. Em 1960, Tia Elza, apresentou-se pelo Governo do Estado nas cidades de Ouro Preto, Sabará e Mariana. Resultado: aplausos dos interioranos. Na Semana da Inconfidência, o coral cantou no Panteão dos Inconfidentes com a presença de autoridades federais. Na medida que o grupo se firmava, oportunidades para viagens internacionais apareciam. Entretanto, o desejo era, primeiramente, desbravar o próprio país.
A primeira apresentação fora do estado ocorreu em 1973, no Nordeste, pelo Festival de Coros de Penedo, em Alagoas. Na oportunidade, o coral visitou ainda os estados da Bahia, do Sergipe, do Maranhão e do Ceará. Viagens oportunas e que renderam novos elogios. Na época, o governador do Pernambuco parabenizou, por meio de carta, o desempenho do coral:
Pernambuco é Nordeste
Pernambuco é Sertão
Pernambuco é Agreste
Mas é rico de emoção.
– E, essa riqueza emocional, sempre contida, normalmente afogada pelas dificuldades e problemas do dia a dia de um Governador Nordestino, de repente explode para um transbordamento da alma surpreendida pelo belo. O Coral Mineiro Júlia Pardini, de repente e de surpresa interrompeu com o seu canto, a vida do Governador de Pernambuco, expulsando da sua sala de trabalho os seus problemas e as suas apreensões. Meninos: vocês vieram ao Nordeste e fizeram uma boa ação. Prossigam, visitem outros Estados e cantem sempre, levando harmonia a todos os recantos do nosso Brasil como sonhou o nosso homenageado Santos Dumont nos dando asas, no mais reto e elevado sentido do vôo.
Recife, 18 de julho de 1973
Eraldo Gueiros Leite – Governador do Pernambuco
O ano de 1973 ainda reservaria surpresas. Tia Elza tanto batalhou, que conquistou a sede própria do coral, no andar superior de sua casa. Neste local, ela pôde receber corais que visitavam Belo Horizonte, como grupos do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e alguns do exterior, a exemplo do Neuchatel, da Suíça, e do Ensemble Villa Lobos, da Alemanha.
A arte ao encontro da arte: o coral Júlia Pardini se apresenta no Park Guell, um dos símbolos de Barcelona
Nos últimos momentos da década de 1970, o Júlia Pardini passou a contar com mais dois corais, sendo um infantil e outro juvenil. Embora noviços, eles também fizeram história, apresentando-se no Canal 4: a TV Itacolomi. E assim, tudo se realizava pela crença no ideal de "cantar para a todos alegrar", lema que os “Pardinis” abraçaram desde Uberaba. "O crescimento técnico e artístico veio aos poucos, enfrentando desafios e 'cantadas' para que nos filiássemos a igrejas, empresas e até partidos políticos. Mas estávamos certos de que a independência seria nosso futuro. A partir de então o coral descobriu sua vocação de levar músicas montanha afora, sendo até mesmo reconhecido fora do Brasil", revela Tia Elza.
À direita, Tia Elza toca piano em apresentação na TV Itacolomi, antigo canal 4. Crédito: Arquivo Pessoal
Tanta história não poderia passar em branco pela regente. Tia Elza tomou os devidos cuidados para que fosse registrado cada momento deste coral, parte substancial da sua vida e uma homenagem à sua querida avó. Antigamente, a regente divulgava as ideias e ações do grupo em jornalzinho, o Arruia, feito em máquina de escrever e depois passado em mimeógrafo a álcool. Só em 1979, que o Arruuuuuuuia parou na gráfica.
Hoje, o jornalzinho, antes mimeografado, está em sua 566ª edição e apresenta notícias do movimento coral que chegam pela internet ou pelos correios. O estilo coloquial se manteve com o objetivo de aproximar os amigos do canto coral e sócios, espalhados pelos quatro cantos do mundo.
De lá pra cá, viagens inesquecíveis para o Júlia Pardini. Afinal, para Tia Elza, fazer música coral foi e sempre será o real significado da sua vida. Com o canto, Elza do Val Gomes chegou onde jamais sonhara, como no Simpósio de Canto Coral na Suécia, Finlândia e Estônia. Também na cidade de Treze Tílias, em Santa Catarina, no Festival de Coros do Chile e na fronteira entre Peru e Equador. Para o coral e pelo coral, a regente luta há 51 anos sem desafinar e perder o compasso, vivendo integralmente para a regência e regendo sua vida por meio do canto.
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Tópico: “Você só vai se realizar na música”
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