22-06-2011 17:01

Por quem os sinos dobram

Religiosidade, tradição e metais: o misto que dá a liga perfeita para os sinos são-joanenses

A catedral de Nossa Senhora do Pilar: majestosa e enigmática, como os sinos que ela preserva.

Texto e imagens: André Martins

Entre os mares de morros que escondem as simpáticas e acolhedoras cidadezinhas do Campo das Vertentes, todos que pela BR-040 trafegam são forçados a lidar com curvas sinuosas. Às dez da manhã, depois de uma noite mal dormida, o movimento do carro me embala e sou obrigado a cerrar os olhos para a paisagem que pretendia admirar.

O dia amanheceu sereno. Lá no alto a temperatura é mais que agradável. No roteiro desta sexta-feira de folga e ensolarada está previsto conhecer mais uma das cidades históricas de Minas - a combinação perfeita para exorcizar os dias de cão da difícil vigésima quarta semana do ano.

Desvendar a linguagem dos sinos: eis a razão da viagem de duzentos e trinta quilômetros, de minha cidade natal, Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, à histórica São João Del-Rei, na belíssima e mística Estrada Real.

O espaço antigo do município onde se encontram as cinco principais paróquias e igrejas são-joanenses, todas de arquitetura barroca, é o ponto de partida da minha saga investigativa. Será possível que em uma cidade suprimida pela contemporaneidade, onde predominam mochileiros e estudantes, há quem dê ouvidos a esse diferente e arcaico método de comunicação?

“Sabe quem vai poder te ajudar?”

É cedo. O relógio marca duas e treze da tarde. Os três portões principais da Catedral do Pilar permanecem trancafiados com grossas correntes de ferro. Ao lado da imponente construção de 1721, um senhor assentado ao fundo de sua simples alfaiataria degusta, lentamente, o almoço. Ele percebe minha presença, mas não interrompe a refeição. Com um aceno de cabeça, reconheço o momento, quase um ritual sacro. Respeitosa e pacientemente aguardo.

Tecidos de matizes sóbrias colorem o balcão de madeira antiga. Uma pequena lâmpada alumia o caminho têxtil que a agulha da máquina de costura penetrará de forma mecânica. Modelos de ternos e camisas de cortes modernos estampam as paredes de atípica tonalidade azul. No umbral de uma das portas, um tecido escarlate e aveludado me lembra o manto de Cristo.

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 Será possível que em uma cidade suprimida pela contemporaneidade, onde predominam mochileiros e estudantes, há quem dê ouvidos a esse diferente e arcaico método de comunicação?
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O meu olhar atento a tudo é interrompido por um homem de quarenta anos, aproximadamente, que irrompe o estabelecimento e de maneira cortês oferece seus préstimos. “Linguagem dos sinos?”. Depois de uma breve pausa, responde: “Sabe quem vai poder te ajudar? O senhor Geraldo. Ele já é mais idoso e sempre esteve por dentro disso”.

Desço o beco de pedra e vinte passos me bastam para chegar à loja de artigos e presentes onde fui orientado a procurar pelo meu primeiro “informante” são-joanense. “Ele não está”, responde a atendente. “Chega a partir das três. O senhor Geraldo conhece um pouco sobre o significado dos sinos das igrejas, mas sabe quem vai poder te ajudar? O senhor Aluízio, que é maestro da Orquestra Sinfônica e tem uma pesquisa a respeito”.

Um tiquinho de história

O maestro da Orquestra Lira São-joanense, Aluízio José Viegas, um exemplo de dedicação à história de sua cidade natal e de empenho para que ela não se apage com o tempo. Crédito: André Martins.

Grande parte da irmandade da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar reside em casas a um curto raio de distância do templo. Aluízio, cuja família sempre se envolveu com o sacerdócio, vive com a esposa em uma modesta acomodação ao lado da igreja. Há alguns anos aposentado, hoje ele se devota inteiramente a Deus.

Na casa paroquial, o encontro receptivo, com largo sorriso no rosto. Poucos são os objetos e cômodas que compõem o ambiente: um banco de madeira rústico bem trabalhado onde nos acomodamos, um quadro, uma cômoda de mogno com pequeno vaso de flor na superfície e, no cantinho, um relógio – réplica de uma inconfundível torre de igreja colonial com um pequeno sino. O ambiente é escuro. Fechada a porta, a iluminação se resume aos raios de sol rebatidos pela igreja e que transpõem a janela ou encontram caminho nas frestinhas da porta.

Ele tem 70 anos. Já é um senhor de idade. Filho de São João, de lá nunca saiu, nem pretende. Sr. Aluízio é uma figura simples e, assim como praticamente todos os moradores locais mais idosos e naturais do município, tem um impressionante domínio da história da cidade, que inevitavelmente se confunde com a própria. Fala de famílias tradicionais, clérigos, fundidores e dos ancestrais como se a eles tivesse sido apresentado um dia.

Quando questionado a respeito dos sinos da cidade, Aluízio sorri e conta causos. Sinos sempre o fascinaram. O “linguajar” e a importância desses gigantescos e pesados objetos, ele conhece desde bem pequeno. “Uma igreja pode até prescindir de um instrumento musical, mas não pode prescindir do sino, pois ele é o elo de comunicação mais rápido e abrangente, pela sua sonoridade, entre a igreja e os fiéis”. Quem conhece os sinais, ele garante, para saber de ritos litúrgicos, datas comemorativas, mortes e até de uma senhora em dificuldades no parto, pode abrir mão da parafernália moderna que inclui televisão, rádio e até telefone.

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 "Sabe quem vai poder te ajudar? O senhor Aluízio, que é maestro da Orquestra Sinfônica e tem uma pesquisa a respeito”
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Grande parte dos sinos são-joanenses foi fabricada no século XIX, na própria cidade. A proibição lusitana em relação à instalação de fundições na colônia, uma medida para conter o contrabando de ouro, começava a se arrefecer em São João Del Rei. Na corte, entretanto, os primeiros sinos foram importados de Portugal.

No Império, o “cardápio” de comunicação era amplo. Numa época em que as esferas religiosa e política se entrecruzavam, nascimentos de crianças de sangue nobre, coroações, aclamações de reis, visita de autoridades e outros acontecimentos eram anunciados pelos sinos. Com a laicização do Estado, os sinos se voltam unicamente para Deus. Temporariamente, é verdade.

No século XX aconteceu um processo de “secularização” do dobrar dos sinos. Tocava-se por qualquer coisinha. Era como se o sagrado se tornasse vão. Ninguém mais tinha sossego. De manhã, tarde e noite lá estavam os sineiros nas torres a badalar. O som constante tirava o sono dos irmãos e dos párocos, que nunca ouviram tanta reclamação ao telefone.

Com o tombamento da cidade pelo Iphan, limitou-se o retinir dos sinos. Ainda assim, hoje há diversas variações. Sinos grandes e pequenos, cada qual com suas peculiaridades de formas e pesos, cumprem uma função específica e dão origem a sons distintos.

Vídeo documentário sobre a nomenclatura dos sinos de São João Del-Rei

Conversa com sineiros

O momento relembra a Paixão e morte de Cristo. Uma pancada e quatro dobres espaçados e tristes se fazem ouvir em São João Del-Rei todas as sextas-feiras às 15h. Antes de mover com dificuldade o sino de sabe-se lá quantas toneladas, ele faz o sinal da cruz e eleva o olhar e a mão direita aos céus enquanto a esquerda segura o badalo.

Valmir é sineiro desde os dezesseis anos. E ao longo de todo esse tempo, errou apenas uma vez. A precisão é algo bastante exigido por parte dos padres. “Eles ficam atentos”, resume. Um dobre a mais ou o descompasso com o relógio de pulso do sacerdote pode significar uns bons puxões de orelha.

Há quatro anos, Vinícius também toca os sinos da Basílica do Pilar. Nunca errou. Por enquanto. Ele tem certeza de que não está imune aos equívocos. “Não tem jeito. O sineiro que diz nunca ter errado, provavelmente está mentindo”.

Para dar conta do ritmo, todos obedecem uma escala. Os sineiros se revezam em duplas. Fazer um objeto daquela magnitude girar em torno do próprio eixo é trabalho para, pelo menos, dois. Cada um deles dedica três dos sete dias da semana ao ofício.

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Tocava-se por qualquer coisinha. Era como se o sagrado se tornasse vão. Ninguém mais tinha sossego
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Diante dos sinos, todo cuidado é pouco. Valmir guarda as marcas de um vago momento de distração. Sua cabeça já foi atigida por uma pancada. Foram diversos pontos internos e externos. Escapou com vida, ao contrário de um saudoso amigo.

A educação e simplicidade dos sineiros impressionam. A rigorosidade com o horário segue a regra. Às 14h50, dez minutos antes do compromisso, os dois já estavam na porta da Basílica munidos de uma chave de quase quinze centímetros que abriria o caminho. O convite me é feito e eu, claro, não faço cerimônias.

A escada, em formato espiral, é muito estreita. Os degraus são pequeninos e muitos. As passagens apertadas e os trechos verticais são obstáculos visivelmente fáceis para meus guias. Para mim, nem tanto. Coisa de explorador de primeira viagem. Como não poderia deixar de ser, cheguei esbaforido. Mas como valeu à pena... Lá do alto tenho uma vista panorâmica de toda a cidade e da imensidão de morros que a cerca.

Às 15h, o maior sino da Basílica ganha movimento e me faz tremer por dentro. O som, ensurdecedor aos ouvidos destreinados, nem incomoda aos sineiros. O meu coração bate forte não sei se pela proximidade ou pela simbologia do momento, que há pouco havia descoberto. É uma experiência simples, mas única, bela. Inesquecível.

Neste áudio, os sinos tocam para anunciar o Domingo de Ramos

Entenda a linguagem dos sinos:

- Em "Linguagem dos sinos de São João Del-Rei", um estudo produzido por Aluízio José Viegas em 1990

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Tópico: Por quem dobram os sinos

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